Quarenta e cinco anos, embora inexpressivo na vida de um país, é uma idade que merece ser comemorada com toda a dignidade porque é suficiente para se aquilatar se terá valido a pena a opção de pensar com as nossas próprias cabeças e andar com os nossos próprios pés e ser um país livre e soberano.
Infelizmente, razões de ordem sanitária não nos permite comemorações mais expansivas para permitir todos os tipos de manifestações de afecto e de carinho e de reconhecimento por esta conquista maior deste povo que sempre aspirou e continua a acalentar o sonho de um país livre, justo e próspero.
Recuando a 5 de Julho de 1975 e revisitando o texto da Proclamação da Independência queria partilhar convosco dois excertos deste histórico e emblemático documento.
Passo a citar:
“Povo de Cabo Verde: Hoje, 5 de Julho de 1975, em teu nome, a Assembleia Nacional de Cabo Verde proclama, solenemente, a República de Cabo Verde como Nação independente e soberana”.
“A República de Cabo Verde assume o solene compromisso de promover a organização económica do País e de criar as bases materiais para a participação no avanço da Ciência e da Técnica e no desenvolvimento da Cultura humanística, rumo ao bem-estar e ao progresso integral do povo e à realização final da paz na convivência humana”.
Estes excertos fazem parte do texto pronunciado pelo saudoso Abílio Duarte o primeiro Presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde Independente, o homem que é patrono deste “Salão Nobre Abílio Duarte”, onde nos encontramos reunidos, neste momento, o homem que batalhou e conseguiu a edificação física deste edifício onde funciona o Parlamento cabo-verdiano e o homem que, mesmo num contexto diferente, lutou para a afirmação da Assembleia Nacional enquanto órgão representativo do Povo.
Queríamos pois, mais uma vez, render homenagem a esta personalidade que nos emprestou a sua voz para dar a conhecer ao mundo o nascimento de um novo Estado Soberano, no concerto das Nações.
Os dois excertos citados demonstram-nos que o ato foi da responsabilidade formal da Assembleia Nacional cujos membros, os primeiros deputados deste país independente, tinham sido eleitos, dias antes, a 30 de Junho de 1975, também nas primeiras eleições universais que tiveram lugar neste chão crioulo, com uma afluência às urnas de 88% dos cidadãos recenseados no território nacional, como consta também do primeiro texto do discurso de Abílio Duarte a cinco de Julho na Câmara Municipal da Praia.
Aproveitamos aqui esta oportunidade para render homenagem ao Povo de Cabo Verde que, nessa histórica ocasião, deu exemplo de responsabilidade, de maturidade, de civismo e de patriotismo, primeiro numa afluência massiva às urnas para escolher os 56 representantes, depois numa participação viva e entusiástica nos actos do nascimento do Cabo Verde Livre.
Esta homenagem ela é ainda mais necessária quando se sabe que Povo de Cabo Verde tem estado sempre à altura dos desafios nos diversos momentos de afirmação deste país.
Foi assim por ocasião da independência, foi assim no arregaçar das mangas para a reconstrução nacional, foi assim na edificação das instituições do Estado, foi assim no momento da transição para a democracia representativa, foi assim nas alternâncias políticas que já tiveram lugar nestas ilhas e está sendo assim neste momento que o país é chamado a enfrentar esta pandemia mundial de contornos imprevisíveis.
O segundo excerto demonstra-nos claramente a ousadia de querer participar no avanço da Ciência e da Técnica, alinhado com a modernidade, o desejo do desenvolvimento de uma Cultura Humanística, a ambição de construir o bem-estar e o progresso e a utopia da conquista da paz na convivência entre os povos.
É caso para se dizer que o segredo dos nossos sucessos reside na profundidade e na solidez dos alicerces lançados na fundação deste país e no profundo e engajado envolvimento do povo nas diversas etapas do nosso percurso.
Quando homenageamos o povo destas ilhas estamos também a registar um digno reconhecimento a todas as gerações dos nossos antepassados que resistiram à dominação, às secas, às crises e as mortandades, a todos os processos que moldaram a nossa identidade e a todos aqueles que acalentaram os sonhos de uma vida melhor para este nosso lindo Torrão.
Foram anos e anos de resistência para a afirmação de uma identidade própria. Resistência física, resistência psicológica, resistência cultural registadas pelas marcas do tempo, imprimidas pelos punhos dos nossos escritores e cantadas pelos nossos poetas e trovadores.
Aqui também aproveito para render a devida e merecida homenagem aos nossos escritores e poetas que manifestaram o seu inconformismo para com a dura realidade vivida pelo povo das ilhas que no dizer de Onésimo Silveira queria “… um poema diferente para o povo das ilhas”
“Um poema sem gemidos de homens desterrados
Na inquietação da sua existência;
Um poema sem crianças que se alimentam
Do leite negro das horas abortadas
Um poema sem mães olhando
O quadro dos seus filhos sem mãe …”
A homenagem aos nossos homens e mulheres, cultores da escrita, que passa pelo reconhecimento dos pré-claridosos aos Claridosos e da Certeza aos dias de hoje.
No ano passado tínhamos referenciado Luís Lofe de Vasconcelos, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, António Nunes e Ovídio Martins e este ano para além da referência já feita já a Onésimo Silveira queríamos destacar a figura do poeta Osvaldo Osório que saudou a independência com o poema “bom dia Cabo Verde”.
“Lhana manhã de julho de arroubos e arrulhos
Bom dia
Bom dia ó mar e céus abertos um dia
Até que enfim alegre inteiro inteiramente nosso total
Bom dia meninos nascidos para a vida
Em pleno julho de arroubos e arrulhos dos homens com a terra
Bom dia a vocês todas guardiães da espécie
Opulentas apagadas simples
E tu trabalhador pescador trovador bom dia
Queremos dar bons dias para todos
A todos e de coração lavado bom dia
no seio e centro de julho nosso orgulho
…”
Peço desculpas por não poder ler todo o poema
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Quando se fala da independência nacional é impossível não referenciar os pais fundadores da independência para reconhecer os feitos ímpares que idealizaram e concretizaram, interpretando de forma mais genuína os sonhos de várias gerações.
Aqui fomos tomar de empréstimo o tratamento que é dado nos Estados Unidos da América “The Founding Fathers” ou simplesmente os Pais Fundadores dos Estados Unidos.
Neste momento, que há quase que um recrudescer de fenómenos de reescrita da história, de reinterpretação dos factos ou até de ajustes de contas com a história é importante começarmos a reconhecer o papel, que os percursores da independência tiveram, para que fôssemos hoje o que somos, enquanto uma Nação vencedora.
Desde logo a figura de Amílcar Cabral, que mostrou os caminhos da liberdade e da independência e mobilizou vontades, capacidades, meios e instrumentos e convenceu a comunidade internacional e os países individualmente para a gesta libertária que nos conduziria a 5 de Julho de 1975.
De Cabral, para além da capacidade, da tenacidade, da liderança, da inspiração e da motivação, temos que reconhecer o seu optimismo e a sua esperança ilustrada claramente para afirmação feita dez anos antes da proclamação da nossa independência nacional, em 1965, onde dizia para os quadros do PAIGC: passamos a citar “ Temos, portanto, razões bastantes para estar contentes e cheios de esperança. Nunca foi tão grande a certeza de que a nossa vitória depende principalmente da nossa acção” fim da citação.
Nunca a ideia de “esperar o melhor, mas preparar-se para o pior” se ajustou tanto como ao contexto em que vivemos actualmente.
Cabral era muito exigente, mas também muito realista a pondo de dizer claramente para os seus camaradas: “Nunca fazer menos do que podemos e devemos fazer, mas não pretender, em nenhum caso, fazer coisas que realmente não estamos ainda em condições de fazer”.
Aqui vê-se, claramente, que media bem os riscos, mas exigia que cada um desse, o máximo que pudesse dar, para o sucesso da luta de libertação nacional.
Não conseguiu ver o seu sonho realizado mas, entretanto, os seus seguidores conseguiram honrar o seu nome e dar continuidade aos seus propósitos.
Assinalar a data de 5 de Julho é, sem sobra de dúvida, render também tributo a Amílcar Cabral uma personalidade que se imortalizou pelos seus feitos e transcendeu os limites das fronteiras da Guiné e Cabo Verde para ser um líder de dimensão africana e de projecção universal como aliás veio a reconhecer a revista BBC sobre a História Universal, que o distinguiu como o segundo líder mundial que marca o século XX.
Entre os pais fundadores entram também personalidades como Aristides Pereira, o primeiro Presidente da República de Cabo Verde que muito contribuiu para a projecção do nome e da imagem de Cabo Verde no mundo, Pedro Pires, o primeiro Chefe do Executivo cabo-verdiano que desbravou os caminho para a reconstrução nacional, contribuiu para a construção de um Estado credível e minimamente estruturado para sobreviver as mudanças e as transformações e veio a ser Presidente da República durante dois mandatos consecutivos e muitos outros correlegionários que colocaram as suas pedras nesta bela edificação que é Cabo Verde.
Um bem-haja pois, a todos os combatentes da liberdade da Pátria.
Hoje, 45 anos depois pode dizer-se que foram cometidos erros, mas aqui também podemos recorrer aos ensinamentos de Cabral, que numa perspectiva pedagógica, dizia: “Os erros que cometemos não devem desanimar-nos, assim como as vitórias que alcançamos não devem fazer-nos esquecer dos erros”.
Quarenta e cinco anos depois é fácil dizer-se que as coisas podiam seguir outro rumo e a respostas será muito fácil para quem analisa friamente hoje, com 45 anos de distanciamento, mas seguramente muito difícil para aqueles que tiveram que decidir sobre os acontecimentos de então, num contexto específico, numa conjuntura internacional determinada e num ambiente com contornos diferentes.
A história assumirá, seguramente, a função de tratar estas matérias com a profundidade que merece.
A independência para Cabo Verde era sobretudo uma questão de dignidade porque, mais de que uma luta para acesso às riquezas, era uma luta para a dignificação da mulher e do homem cabo-verdianos que precisavam se reencontrar na sua própria Terra, enfrentando e vencendo as dificuldades impostas por uma natureza severa mas vencendo e exorcizando os fantasmas da seca e de todas as crises.
Nestas quatro décadas e meia cumprimos a independência, garantimos a paz e a estabilidade, melhoramos as condições de vida das populações, aumentamos a riqueza nacional, melhoramos as condições sociais das pessoas, designadamente nos domínios da saúde e da educação, aumentamos o nível de conforto das pessoas, infraestruturamos o país, qualificamos o nível das liberdades individuais, promovemos a democracia e viabilizamos estas ilhas.
Não obstante todos estes ganhos o país ainda não atingiu o nível que idealizamos e sonhamos, com mais justiça social, menos desigualdades, mais emprego, mais oportunidades para os jovens, mais e melhor educação, mais e melhor saúde.
A actual crise sanitária veio pôr a nu um conjunto de fragilidades que devem levar-nos a repensar as respostas para um conjunto de problemas como o acesso ao emprego e a rendimentos, a habitação, a água, as condições de saneamento para além de repensar os investimentos nalguns sectores fundamentais como a saúde, a agricultura, a pesca, pequenas indústrias para reduzir as dependências das pessoas.
Se durante algum tempo se preocupou com respostas para debelar as dificuldades hoje é cada vez mais evidente que a ambição deve ser muito mais ousada para tirar as pessoas das situações de dificuldade.
A crise que enfrentamos deve servir-nos-á para analisarmos bem o percurso, os erros e as falhas que cometemos, as correcções que devem ser introduzidas e as respostas mais adequadas para o novo contexto.
Uma outra lição que devemos tirar é de como devemos eliminar os desperdícios rentabilizar mais os nossos recursos estratégicos como a localização, o mar, o ambiente, a nossa orografia e outros.
Temos que poder fazer um debate sério e descomplexado se a melhor forma de rentabilizar os nossos recursos é aliená-los ou encontrar outras vias de fazê-los render.
Continuamos a acreditar no país e continuamos a acreditar no sucesso destas ilhas.
Viva Cabo Verde
Viva a Independência Nacional.
Praia, 05 de Julho de 20 20