Estamos aqui mais uma vez para assinalar o dia nacional de Cabo Verde, o dia da Independência Nacional.
Com efeito, há 44 anos, através de um ato testemunhado por milhares de pessoas, numa mistura entre o solene e um ato de massas, era proclamada a independência destas ilhas ao mesmo passo que se assistia a arriar e o hastear das bandeiras que simbolicamente marcaram o percurso do nosso destino.
Foi um momento onde muitos sentimentos se confluíram, sentimentos próprios daqueles que marcam um momento da realização de um sonho bem acalentado e de um desejo bem abençoado.
Quem esteve presente testemunhou que rolaram lágrimas de alegria, esboçaram-se sorrisos prazerosos, pularam mais fortes os corações invadidos por uma experiência inexplicável, respiraram-se de alívios os que sempre viram o seu futuro incerto ao mesmo passo que pesavam nos ombros dos independentistas a responsabilidade de garantir um novo poema para o povo das ilhas.
Independência enquanto ato único, singular e irrepetível merece ser comemorado sempre com toda a dignidade para simbolizar os sacrifícios enfrentados e vencidos, as adversidades sempre presentes e persistentes que moldaram a fibra do povo ilhéu, as conquistas da resiliência da alma crioula e a concretização das profecias cantadas e imortalizadas pelos nossos poetas e trovadores.
Este momento da comemoração da independência é um momento de exaltação, é um momento de reconhecimento, é um momento de homenagem e é um momento de compromissos.
De exaltação porque neste momento deve vir ao de cima os valores como a dignidade, a tenacidade, a coragem, o sacrifício, a teimosia, a heroicidade, o patriotismo e a capacidade de resistir, valores que temperaram e moldaram o espírito das mulheres e dos homens deste bem-aventurado chão.
Estes valores serviram sempre para nos mostrar que o impossível só existe para aqueles que não lutam, as dificuldades existem para serem confrontadas e vencidas, os obstáculos existem para serem ultrapassados e para testar a nossa capacidade e que o inviável pode também ser tornado viável quando sonhamos, acreditamos e batalhamos.
Só assim se justifica o enfrentar de secas cíclicas, o cair e o levantar de novo, o chorar os mortos pelas fomes e mortandades e enxugar as lágrimas e voltar à vida para, de novo, voltar a erguer e enfrentar a natureza madrasta, ir para terra longe e retornar para enfrentar as agruras deixadas e esquecidas apenas por alguns momentos.
Só assim se entende o perder todas as sementes na terra, voltar a espiar para o céu e lançar novas sementes à terra ressequida, adicionando seu suor e estribando-se apenas na crónica esperança crioula que nunca se esvai.
Só assim se compreende a certeza de que quem cansa alcança e de que quem acredita vence sempre, por maiores que sejam as dificuldades impostas pela natureza ou outras.
Só assim compreendemos o inconformismo das várias gerações de crioulos que sempre reclamaram da situação vivida e sempre acreditaram que novas auroras haviam de despontavam para enterrar, definitivamente, as tristezas, enxugar as lágrimas e abafar as mágoas.
Por isso mesmo comemorar a independência deve ser o momento da exaltação da alma crioula encarnada pelos camponeses, pelos operários, pelos poetas e escritores e por todas as gerações que pagaram com o seu sacrifício, lágrimas e suor o preço da emergência de uma Nação vencedora.
Este é também um momento de reconhecimento porque se hoje já fizemos este percurso e convencemos a todos que afinal este país é viável, é porque outros, antes de nós, acreditaram, sonharam e agiram.
Refiro-me à geração que abraçou a causa da libertação nacional e fez dela uma bandeira, estimou-a como uma missão e dedicou-se a ela numa entrega, por inteiro, sem olhar a riscos, sem se intimidar pelos desafios sem se amedrontar pela força a enfrentar sem hesitar pela incerteza e sem vacilar perante a aventura que seria seguir aquele caminho.
Refiro-me a geração da luta de libertação nacional que, respondendo de pronto ao chamamento de Amílcar Cabral, sacrificaram a sua vida, hipotecaram o sem futuro e pagaram, com o sacrifício da sua juventude o preço da liberdade.
Souberam interpretar o sentido da história e automobilizaram-se para fazer realizar a história, escrevendo uma das mais belas páginas da caminhada triunfal do povo cabo-verdiano.
Eu ousaria chamá-los de caçadores de sonhos e perseguidores da utopia porque souberam fazer a síntese e projectar novos caminhos, os caminhos da liberdade, da dignidade, da fraternidade e do bem-estar.
Sim, foram a caça do sonho do inconformismo de Luís Loff de Vasconcelos, um maiense de nascimento e cabo-verdiano ilustre do século XIX, do sonho, de uma vida melhor, do irreverente e inveterado romântico, Eugénio Tavares, digno filho da Brava, do sonho da dignidade idealizada por Pedro Cardoso, um ilustre Filho do Vulcão, do sonho de António Nunes, um nobre filho de Santiago que idealizou a independência no “Poema de Amanhã” ou ainda do mais recente inconformado Ovídio Martins, natural de São Vicente, que viveu, na sua própria pele, os custos da ousadia de sonhar com a liberdade e que nos legou a sua revolta com o emblemático desabafo “Gritarei, berrarei, matarei, não vou para Pasárgada”.
Podíamos referenciar muitos outros que sonharam dias diferentes para o povo das ilhas, mas queríamos apenas registar que houve sonhos mas também houve destemidos caçadores de sonhos que levaram o seu inconformismo ao extremo e demonstraram-nos que a liberdade tem um custo, que o preço a pagar por ela é, muitas vezes, bem alto mas que, mesmo assim, valerá a pena lutar por ela.
O meu reconhecimento, pois, a estes valorosos homens que ousaram desafiar o tempo, interpretaram o sentido da história e encarnaram o espírito de uma época e abraçaram a causa libertária.
Este reconhecimento é extensivo a todos quantos nas matas da Guiné ou na clandestinidade das ilhas ou, ainda, na nossa imensa e dispersa Diáspora espalhada pelo mundo, se mobilizaram em torno desta gesta maior que nos conduziria a hora zero da República, a independência nacional.
A independência não é uma dádiva, ela é uma conquista. Uma conquista de todos, é certo, mas com os seus percursores, com os seus protagonistas que se agigantaram pela dimensão dos seus feitos e pela grandeza da sua generosidade.
Homens e mulheres de várias origens, de vários estratos sociais, com diferentes níveis de instrução, todos unidos pelo mesmo espírito de entrega, se mobilizaram em torno de uma causa maior, a causa da afirmação da Nação e da independência nacional.
Hoje até parece fácil, hoje até, numa perspectiva cómoda de interpretar a história, pode ser posto em causa este percurso, mas a história felizmente, mais de que uma interpretação simplista é nos elucidada pelos registos dos feitos e dos factos.
A história é feita assim, por pessoas que estão lá, no local adequado, no momento certo e na hora exacta para fazer o que deve ser feito.
Registamos aqui também o nosso reconhecimento à comunidade internacional que acreditou em nós e através de países organizações garantiram-nos sempre o apoio necessário para fazermos esta caminhada bem-sucedida e demonstrar que valeu a pena trilhar este caminho para a plena autonomia.
Para além da exaltação e do reconhecimento tinha dito que hoje também é um momento de homenagem que é também uma forma de reconhecimento daquelas figuras que se destacaram pela sua entrega, pela sua ousadia, pela sua lucidez ou pela sua capacidade de liderar homens e de gerir processos.
Nesse aspecto, a minha primeira homenagem é dirigida a figura ímpar da história recente de Cabo Verde, à figura de Amílcar Cabral enquanto visionário, enquanto teórico, enquanto federador das vontades, enquanto mobilizador, enquanto estratega, enquanto diplomata e enquanto humanista.
A minha segunda homenagem dirige-se para a figura de Aristides Pereira homem que assumiu os comandos da luta de libertação depois do desaparecimento físico de Amílcar Cabral e que foi o primeiro Presidente da República de Cabo Verde, emprestando a sua discrição, a sua serenidade, a sua lucidez e o seu sentido de Estado para a dignificação do país e para a projecção segura destas ilhas além-fronteiras.
A minha terceira homenagem dirige-se para o Comandante Pedro Pires, uma figura incontornável do percurso das ilhas, vinculada às principais transformações ocorridas neste país independente, tendo desempenhado as altas funções de primeiro Ministro, de que foi o primeiro de Cabo Verde independente, e de Presidente da República já num regime pluralista e concorrencial.
A minha quarta homenagem é dirigida a duas figuras, que há alguns anos deixaram o nosso convívio mas, que tiveram ainda a oportunidade de colocar algumas pedras no edifício da reconstrução nacional. Estou a falar dos saudosos Abílio Duarte e José Araújo que desempenharam funções relevantes na República.
A minha homenagem seguinte dirigida para uma figura que nos deixou há poucos dias, o Comandante Joaquim Pedro Silva, conhecido por Baró, que deu tudo de si para a luta de libertação nacional e desempenhou também cargos relevantes quer militar quer civil entre as quais a de vice-Presidente da Mesa da Assembleia Nacional.
A sua humildade e discrição não permitiram que fosse plenamente conhecido o seu papel enquanto um dos protagonistas da gesta da libertação nacional.
A minha última homenagem é dirigida à juventude de 1974/1975, que aderiu massivamente, em todo o território nacional e contribuiu também para criar aquele ambiente contagiante que culminaria com o grandioso dia 5 de Julho.
Entre esta juventude queria lembrar uma figura praticamente desconhecida e que raramente é lembrada, não obstante ter sido morto nos momentos de grande entusiasmo de mobilização nacional para a independência.
Estou a falar de um jovem daquele conturbado período, o Antoninho de Vila Nova, que faleceu ainda em 74, vítima de um tiro infeliz que, infelizmente, não o permitiu ver o país conquistar a sua independência.
Para além de homenagem este é também o dia de estabelecer compromissos. Compromissos entre os sujeitos políticos, compromissos com o país e compromisso com as pessoas isto é compromisso com os cabo-verdianos.
O primeiro compromisso deveria ser o de, cada dia, dar mais sentido à independência nacional com um desenvolvimento mais justo, mais inclusivo, mais sustentável, com menos desigualdade, com mais dignidade para cada pessoa, individualmente, e com oportunidade para todos.
O outro compromisso é o de enfrentar os desafios de garantir que todas as ilhas tenham oportunidade de se desenvolverem aproveitando todas as suas potencialidades e garantindo o bem-estar para os seus habitantes.
Um outro compromisso deveria ser o de enfrentar e vencer a pobreza e garantir as condições de vida, com dignidade, para todos os habitantes estas ilhas.
Um outro compromisso seria o de qualificar a nossa democracia, garantindo a realização plena de todas as liberdades e fomentando a ingerência de todos os cidadãos nas questões que dizem respeito à vida do país.
Um outro compromisso seria o de contribuir para a redução do nível de crispação política, aumentando os níveis de diálogo e de tolerância com relação às ideias e às propostas diferentes.
Um outro compromisso é o de lançar as bases para a construção de pontes mais sólidas que nos conduzem a entendimentos e consensos duradouros para vencer os desafios actuais e enfrentar os desafios futuros.
Um outro compromisso está ligado ao desafio de vencer a batalha da educação e dar ao país uma educação que vá para além da alfabetização, ultrapasse uma simples instrução, transcenda à simples aquisição de conhecimento para se transformar numa formação integral que se transforme num factor diferenciador da competitividade destas ilhas.
Por último apelaria a um compromisso que nos conduzissem a novas causas mobilizados que nos voltasse a causar arrepios, tal qual os provocados pela independência nacional, e nos levasse a uma motivação nacional generalizada e nos permitisse vencer o individualismo e abraçar a causa da solidariedade e de um desenvolvimento mais inclusivo.
Se pudesse resumir numa frase o compromisso de que Cabo Verde é todos e para todos os seus filhos onde cada um tem direito a sua gota de água.
Não podemos sentir medo da liberdade que o povo tem de escolher o caminho, de se manifestar, de se protestar, de criticar e de exercer a sua cidadania activa.
Afinal, tudo que idealizamos e fazemos só faz sentido se for colocado ao serviço do povo e for sufragado pelo povo.
Temos que continuar a sonhar a ser caçadores dos nossos sonhos porque se até agora deu certo é porque temos condições para fazer mais e melhor.
Feliz dia de independência a todos.
Feliz 5 de Julho dia da união das ilhas, da unidade do povo e da reconciliação da Nação com a sua história.
Viva Cabo Verde!
Rui Mendes Semedo - Líder Parlamentar do PAICV