Estamos aqui, mais uma vez, para lembrar e celebrar 13 de Janeiro, no seu espírito, enquanto uma etapa importante no percurso deste país que sonha, desmedidamente, aspira, legitimamente, e luta, com todas as suas forças, para ser uma Terra onde todos possam viver bem e sentir-se felizes.
Nesta ocasião é sempre bom lembrar como chegamos a esta data tão emblemática para a República.
Depois da ascensão à independência, conquista maior do povo cabo-verdiano, e de 15 anos de reconstrução nacional que permitiu lançar os alicerces fundamentais no processo da viabilização destas ilhas, como país soberano, Cabo Verde deu mais um salto rumo à qualificação dos valores essenciais da liberdade, do direito e da democracia.
O que marca esta mudança fundamental é o ambiente de estabilidade, de paz social, de previsibilidade e de envolvimento de todos como a sociedade, as organizações políticas e sociais e todas as instituições chamadas a regular, a conduzir e a fiscalizar o processo.
Convém lembrar que para se chegar a esta data houve um primeiro impulso de cima com a sábia decisão de abertura política ao um regime concorrencial e competitivo entre as diversas forças tanto as existentes como as que se fizeram, posteriormente, presentes.
Com efeito o PAICV, enquanto partido único na altura, fazendo uma boa leitura do contexto internacional e dos ventos de mudança que sopravam de leste a oeste e de norte a sul, interpretando o estádio de desenvolvimento do país e as expectativas dos cabo-verdianos, decidiu a 19 de Fevereiro de 1990, proceder a abertura política, abraçando plenamente os caminhos do pluralismo, com todas consequências, mesmo que isso implicasse a perda do poder.
A sociedade reagiu positivamente à decisão de abertura e o ambiente criado proporcionou múltiplas movimentações sociais e políticas que favoreceu o surgimento e projecção de forças políticas como o Movimento para a Democracia que veio a ter um papel importante na dinâmica da transição democrática.
Muitos falam do sucesso da nossa transição para a democracia e muitos questionam do segredo desta caminhada bem-sucedida num período bastante curto quando se sabe que noutros quadrantes os processos foram bem dolorosos e, outros, até sangrentos.
Muitos ingredientes terão contribuído para que tudo tivesse acontecido na normalidade e com uma certa naturalidade e, sem a pretensão de substituir os historiadores e outros investigadores, ousaria enumerar alguns como a maturidade da classe política, a lucidez e a visão dos líderes políticos de então, o nível de tolerância da sociedade cabo-verdiana, a boa-fé dos que governavam na altura, a colocação dos interesses dos país acima das ambições e das vaidades pessoais e a definição clara das regras do jogo.
Lembro-me claramente de Abílio Duarte ter dito uma certa vez, em pleno processo já de disputa, que deveriam ser criadas todas as condições para uma participação justa dos partidos, fugindo a tentação de dificultar o campo de acção das organizações em presença.
Lembro-me também da ideia defendida pelo Comandante Pedro Pires em como se deveria fazer tudo para que a mudança fosse efectuada no quadro institucional para se garantir a estabilidade do país, a segurança da população e a credibilidade externa destas ilhas.
Esta boa-fé, esta cultura institucional e esta preocupação sincera com os supremos interesses de Cabo Verde foram fundamentais para o sucesso do processo de transição.
Acredito que isso também estaria na génese da aceitação da criação de uma comissão paritária com o MPD para negociar todos os contornos da caminhada que nos conduziria ao 13 de Janeiro e, é bom lembrar, que nas negociações o PAICV acabou por aceitar, praticamente, todas as exigências colocadas pela então oposição.
Cheguei algumas vezes a testemunhar fortes críticas aos dirigentes de então em como estariam a ser, por vezes ingénuos e, outras vezes, excessivamente tolerantes mas hoje, com o distanciamento que só o tempo nos permite ter, tiro o meu chapéu ao comportamento daqueles que decidiram, conduziram e geriram esta histórica mudança, pensando profundamente no país.
Muitos viram o seu nível de responsabilidade e tolerância submetidos à máxima prova com críticas duras, injúrias despropositadas, calúnias infundadas e uma tentativa clara e intencional de assassinato de carácter, mas todos resistiram a seguir o caminho mais fácil de responder pela mesma moeda.
E aqui, mais uma vez, rendo a minha homenagem sincera ao Comandante Pedro Pires que recusou, convictamente, seguir aqueles perniciosos caminhos de pôr na praça pública tudo que poderia beliscar o bom nome e a credibilidade do país.
Às calúnias, às difamações, às insinuações injustas e as provas forjadas, respondeu sempre, com tranquilidade, com serenidade, com postura de um estadista e com um profundo patriotismo.
Hoje recordamos com piada a expressão “mamadores” que ecoou em todos as nossas montanhas, nos vales e nas nossas planícies e até registadas em requintados batuques com poemas encomendados e letras inspiradas em campanha.
Hoje todos nos divertimos com aquela histórica conta bancária, forjada nos últimos dias da campanha eleitoral, dando a conhecer as riquezas dos nossos dirigentes nos bancos Suíços e noutros bancos internacionais, mas acredito que, na ocasião, não terá sido fácil digerir.
Se digo isso não é com nenhuma intenção de reacender mágoas, mas tão-somente para aproveitar este dia de liberdade e da democracia para lembrar alguns momentos e partilhar o quanto este país foi maduro num processo que poderia ser, para além de fraturante, também dramático.
É claro, e isso tem que ser dito também, que o MPD, principal oposição nascida depois da abertura política, foi inteligente, perspicaz e suficientemente astuto, no bom sentido da palavra, e soube bem aproveitar, a seu favor, toda a brisa que lhe bafejava de feição e, por isso mesmo, ganhou, com todo o mérito e legitimidade, as primeiras eleições livres, democráticas e pluralistas.
Assim, é também de toda a justiça reconhecer o papel dos dirigentes do MPD que na altura deram o seu máximo para a confrontação e a disputa política que nos conduziriam a este dia 13 de Janeiro.
Aristides Pereira, num primeiro momento, e António Mascarenhas Monteiro, num segundo momento, tiveram um papel importante na transição democrática por ambos serem figuras que exerceram a sua magistratura com discrição, seriedade, isenção e um profundo sentido de Estado.
Do ponto de vista institucional não devemos perder de vista todo o trabalho feito para dotar o país de legislações fundamentais para criar um quadro legal que permitisse a realização justa e livre dessas primeiras eleições concorrenciais.
Foram aprovadas a Lei da Greve, a Lei da Manifestação, a Lei da Associação, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei Eleitoral, para além da revisão da Constituição, todas elas pela Assembleia Nacional Popular, na altura, e que nos leva também a enaltecer o papel dos nossos Deputados dessa legislatura, que se tornou também, histórica pelas condições criadas.
A mim me causa até alguma estranheza que se tente esquecer ou queimar os arquivos desta etapa tão crucial para a realização das eleições, a 13 de Janeiro de 1991.
Quando se comemora os 24 anos da Comissão Nacional de Eleições, por exemplo, eu pergunto-me o que fizemos com aquela Comissão Eleitoral que organizou aquelas primeiras eleições, consideradas exemplares, justas e transparentes.
Senhor Presidente da República
Minhas Senhoras e meus Senhores
Depois deste momento, com altos e baixos, com erros e falhas, mas sempre convictos do caminho a percorrer, fizemos, todos juntos e com um forte apoio dos cabo-verdianos, um percurso que nos engrandece e nos orgulha na construção desta democracia vibrante e credível com eleições regulares e, cada vez, mais transparentes.
Conseguiu-se introduzir alterações nas regras e nas práticas que dão mais qualidade a nossa democracia e conseguiu-se garantir, até agora, que os Governos sejam expressão legítima e verdadeira das escolhas e preferências do povo.
Se todos os organismos internacionais avaliam positivamente a nossa democracia quer dizer que valeram a pena todos os esforços consentidos, todos os investimentos feitos e toda a mobilização social registada ao longo desses anos e esses resultados devem ser motivo de orgulho, de celebração e de comemoração de todos cabo-verdianos, porque são ganhos da República.
Se todos os cabo-verdianos acreditam na democracia como forma de vida e como a melhor via para a gestão do país, temos que ser capazes de pegar no investimento feito e fazê-lo crescer e florescer, introduzindo os ajustamentos necessários para o seu aperfeiçoamento e consolidação.
Sem perder de vista as conquistas e os ganhos democráticos, não devemos esquecer que a democracia é um percurso longo, um projecto sempre em construção que exige dos responsáveis um nível profundo de controle e um policiamento regular, pensando permanentemente na sua qualificação.
Senhor Presidente da República
Minhas Senhoras e meus Senhores
Temos que reconhecer que não obstante os ganhos há coisas que não vão bem e que precisam urgentemente ser corrigidas.
Estamos a falar de falhas nos mecanismos de transparência e prestação de contas, estamos a falar do respeito pelos direitos da oposição democrática, estamos a falar do controle e da fiscalização do executivo, estamos a falar do respeito pelas conquistas da liberdade de imprensa, estamos a falar da realização dos negócios públicos, estamos a falar da disponibilização de informações para os cabo-verdianos e para o Parlamento, enquanto instituição plural e centro vital do sistema democrático, estamos a falar da forma de lidar com a expressão da diferença, estamos a falar da forma de encarar as reivindicações da população que exerce os seus direitos constitucionais sobre as mais diversas formas, enfim estamos a falar de um exercício livre da liberdade de expressar e de exercer a cidadania.
Estas falhas são bastante elementares e primárias para um país, como o nosso, que fez já o percurso que já fizemos e que aspira estar nos lugares cimeiros quando se fala em índice de democracia. A este propósito medidas devem ser tomadas para que o país não volte a perder pontos e posições nas avaliações internacionais como aconteceu recentemente.
São falhas facilmente ultrapassáveis desde que haja vontade política, um compromisso firme, e um propósito consequente de melhorar, de forma permanente e sustentada, as conquistas democráticas.
O PAICV, enquanto maior partido da oposição, com grandes responsabilidades na governação do país, exercendo o seu direito de oposição democrática, tem trazido para a esfera pública um conjunto de questões que preocupam os cabo-verdianos que tem que ver com os dossiers da privatização e com a responsabilidades do Estado em garantir bens essências como os transportes, a segurança e o acesso das pessoas ao rendimento e a melhores condições de vida.
O PAICV vai continuar a fazer tudo para que o Governo a assuma as suas responsabilidades e realize os compromissos que assumiu com os cabo-verdianos.
Senhor Presidente da República
Minhas Senhoras e meus Senhores
A democracia deve ir para além dos aspectos formais e de representação, criando todas as condições para aumentar o nível de participação dos cidadãos e ampliar os espaços de exercício da cidadania em todas as suas vertentes.
Uma democracia saudável não só não deve ter medo e receios de reivindicações do povo, através de manifestações e de greves, como também deve criar todas as condições para que as vozes discordantes sejam exprimidas e sejam ouvidas.
Assim, gostaríamos de aproveitar esta data da liberdade e da democracia para saudar todos aqueles que tiveram a coragem de exercer a sua cidadania activa, expressando o seu descontentamento ou reivindicando a resolução dos problemas que os afecta no seu dia-a-dia.
Neste particular gostaríamos de, aproveitando também a ocasião, alertar o Governo para arrepiar caminho e tratar com mais responsabilidade as organizações e as iniciativas da sociedade civil como as que tiveram lugar em São Vicente e em Tarrafal de Santiago.
É nos momentos como esses que são postos à prova o nível de tolerância, a capacidade de diálogo e o reconhecimento do direito à liberdade dos cidadãos e das organizações da sociedade.
Não vale a pena tapar o sol com a peneira, a realidade existe e não pode ser escamoteada e nem deve ser tratada com desdém ou desprezo, como tem acontecido.
É responsabilidade de todos os partidos políticos e de todos nós analisarmos, com frieza e serenidade, os acontecimentos, avaliarmos bem os fenómenos recentes e encontrarmos as respostas adequadas para resolver os problemas existentes e encontrar os caminhos que garantam a estabilidade e a governabilidade destas ilhas.
Encontrar respostas para estas situações emergentes constituem um dos grandes desafios da nossa democracia alicerçada em valores e princípios constitucionais que são também valores universais.
Com a independência ganhamos e construímos um país com integridade territorial e com unidade nacional e com a democracia deveremos, todos nós, aprimorar, todos os dias, os mecanismos de participação e de tratamento igual de todas as ilhas.
Devemos aprender com os nossos próprios erros e devemos aprender com os erros dos outros e procurar calibrar a nossa democracia de forma que ela seja, sempre, uma democracia com a qual o povo se identifica.
Não devemos fechar os olhos e fingir que o que se passa lá fora não tenha nada a ver connosco, enquanto um país inserido nas dinâmicas mundiais.
A terminar, diria que faz sempre sentido celebrar 13 de Janeiro se o fizermos na sua plenitude, pelos ganhos e conquistas, pelo percurso que fizemos, pelas insuficiências ultrapassadas, pelos desafios enfrentados e pelas respostas que devem ser encontradas para o permanente aperfeiçoamento da nossa democracia.
Viva 13 de Janeiro!
Viva Liberdade!
Viva Cabo Verde!
Praia, 13 de Janeiro de 2019
Rui Semedo – Líder da Bancada Parlamentar